Um miado infantil de gato. Outro miado insistente se aproximando. Outro e mais outro e daí a pouco saio do lugar pra ver o movimento. Eram três. Gatinhos de uns dois ou três meses, provavelmente morando lá. Nada demais se não estivéssemos num cemitério.
Os gatos têm costumes interessantes. Eles roçam, se esfregam literalmente em nossas pernas quando querem um afago, totalmente domesticados parecem já nascer com o código genético totalmente redefinido com a perda total de sua original ferocidade felina.
Nada demais se não estivéssemos num cemitério assistindo a ‘seo’ Ciço de Camelo colocar os últimos bocados de massame nos tijolos que fechariam em definitivo a urna em que Dona Beatriz ficaria definitivamente aprisionada. Pode parecer “coisa do além”, mas foi exatamente assim. Logo ali e logo com ela que era apaixonada por gatos. Cinco ou seis testemunhas, Vinícius com minha lanterna inocentemente alumiando alternadamente a carroça de onde o coveiro tirava o massame e a parede do túmulo onde titia estava sendo sepultada. Era noite no mesmo cemitério onde já fiz até serenata em véspera de finados.
A vida de Dona Beatriz foi cercada por gatos. Minha infância em sua casa foi cercada por gatos. Um angorá, um mourisco, um amarelo... sempre os gatos fazendo-lhe companhia. Até que Mustafá, o seu último preferido se foi em definitivo e ela perdeu o gosto por criar gatos. Mantinha a sua última foto, feita pelo celular de Tia Zorilda, em um porta-retratos por sobre a base de sua estante, bem perto da TV por onde ela via o mundo.
Em sua temporada de mais de 15 anos entre a cadeira de rodas e a cama, guardando e domesticando suas dores a cada segundo, Titia olhava o mundo de uma forma interessante. Ela chamava de “minhas alegrias” suas dores atrozes de uma artrite reumatóide que lhe tirara quase todos os movimentos e sua capacidade de manipular objetos.
Quinze anos e mais um pouco de um quase martírio. Um sorriso permanente nos lábios, uma charada pronta pra qualquer visitante, uma anedota na ponta da língua pros mais íntimos, uma história do passado pros familiares ou amigos, uma lembrança doce de sua memória prodigiosa, uma palavra de conforto pra quem a visitasse cheio de lamúrias, pensando que iria confortar uma doente e saía de lá confortado.
Teve em Rosani Freire, Cornélio e filhos a família que não tinha ao seu lado. Teve em Lúcia, sua auxiliar e “enfermeira”, a filha que nunca teve e, como dizem, o anjo da guarda que a protegeu, a carregou literalmente nos braços entre a cama, a cadeira de rodas, o banheiro, alguma novena ou visita especial e assim foi sua vida nos últimos tempos.
Se alguém lamentava pelo fato de estar ali há tanto tempo ela respondia: “e o filho de Heleno que nunca soube o que é andar? Eu ainda andei e fiz tudo sozinha até os 55 anos”. Sua coleção de chaveiros na parede, seus livros, seus discos, sua inquebrantável fé, sua prontidão pra ajudar alguém que precisasse de uma palavra de conforto, sua disposição para a vida.
Há pouco mais de três meses fez uma cirurgia em um olho e me disse: “se eu perder a visão completamente não fica quase nada. Então, se eu puder ver já terei mais motivos pra me alegrar um pouco". E assim foi ao Dr. Sabino Rolim pra “arrumar” seu olho direito com a cirurgia de catarata enquanto o esquerdo dava mostras de não poder mais ser recuperado.
“Decolores! Decolores é a primavera florindo caminhos... Decolores! Decolores são todas as flores são os passarinhos!” É a sua cara guiando o grupo de jovens Decolores em Juazeirinho lá pelos anos 70, junto com Dona Madalena e Rosinha Zelo. Ainda tentei entoar em sua despedida, depois de uma provocação de Verônica ao lado de Zé Martins, mas a voz embargou e um arrepio me impediu. Encabulei!
Uma das maiores e melhores lições de vida que já pude receber. Setenta e Cinco anos de alegria e dedicação à vida. Verdadeira celebração.
Os acordes que hoje consigo ‘impor’ ao piano são resultado do que aprendi com ela na igreja de Juazeirinho por volta de 1977, entre meus 15 e 16, quando resolveu passar uma temporada em São Paulo e eu fui o escolhido para sucedê-la na Sarafina. Ensinou-me a escala natural de tons maiores e menores e lá fui eu dar conta de acompanhar todas as missas dali em diante. Descobri que sou do tempo de Sarafina. Pra quem não sabe, um órgão de fole de pedais, alemão (o da igreja de Juazeirinho deixaram ser literalmente comido pelos cupins, apesar de minha insistência, à época, em trocá-lo por um eletrônico com o objetivo de recuperá-lo), que recebia o nome de Harmônio, muito comum em igrejas lá pelos tempos de antigamente.
Além de acompanhar as missas eu pegava as chaves da igreja na casa de Dona Nevinha de Chico Antero e treinava algumas tardes aquilo que seria tocado no domingo. De quebra aproveitava pra ‘tirar’ algumas canções de Padre Zezinho e, sem medo de pecar, aproveitando a maravilhosa acústica da igreja, arriscava algumas de Roberto Carlos. Sozinho... Arrepiante! Não havia pecado! Tentava transpor o que sabia ao violão pro Harmônio.
Aprendi muita coisa com Titia. Uma delas foi a não desistir nunca.
Na estrada de volta pra Campina, com a mesma melancolia de outras duas viagens que já fiz neste semestre quando fui me despedir de Dona Neide, minha Mãe, e de Iuri, meu sobrinho, ‘viajei’ junto com ela nas belas histórias do passado, como falava com Ivam Freire no Bar de George há poucos dias enquanto degustava uma deliciosa rabada: era uma figura fenomenal.
Os gatos, que foram sua companhia predileta, depois das pessoas, marcaram presença em seu último adeus. Com poucas testemunhas, mas estavam lá como que para agradecer pelo seu carinho com os seus.
Coincidências? Se há algo de sagrado nisto, de místico, de misterioso, de secreto... só quem já partiu poderia saber. Como não vai contar... fica o registro! Fica a minha saudade... doce saudade...