20 de abril de 2007

O CÃO DE PAVLOV

Não me conformo com a complacência do nosso povo, onde me incluo, com a triste memória da ditadura militar no Brasil. A Rua Presidente Costa e Silva, que teria muito mais sentido se fosse chamada João Goulart, por acaso, transformou-se em minha rua. Há tempos tento levar adiante a idéia do professor Benjamim de fazer um movimento com tal objetivo: mudar o nome e a futura Rua João Goulart (JG) teria sua continuidade na Avenida JK, que já existe em direção ao bairro do cruzeiro dando acesso à Catingueira, cruzando a Alça Sudoeste. Já conversei com vários moradores e, apesar da simpatia em relação à proposta, nunca nos mobilizamos para tal fim. A Costa e Silva junto com a JK se transformaram em minha pista de caminhada, assim como de umas duzentas ou mais pessoas todos os inícios das manhãs. No final do quarteirão onde fica minha morada, do mesmo lado da rua, tem uma casa que ocupa uns dois mil metros quadrados de terreno e que tem um grande pé de macaíba bem na esquina. Macaíba, pra quem não conhece, é uma palmeira também chamada de macaúba ou bocaiúva em outros lugares. A foto acima ajuda a puxar pela memória. O fruto da macaíba é um coquinho do tamanho aproximado de uma bola de tênis, de casca dura, mesmo tendo ela menos de um milímetro de espessura. Possui uma polpa babosa sob essa casca e um coco duríssimo com uma amêndoa em seu interior, muito parecida com uma castanha-do-pará. Pois bem! Esta manhã a caminhada me proporcionou uma viagem inesquecível à infância. Um carro passou rapidamente, bem em frente a tal casa, e seu vácuo tangeu pra junto de mim uma macaíba inteira e de aparência saudável que veio rolando no asfalto como se quisesse mesmo me encontrar. Minha reação foi imediata e apanhei a dita cuja, que já estava com a casca rachada, provavelmente pela queda ao se desgrudar da árvore. Este encontro mudou completamente meu dia e o rumo de minha caminhada. Absorto, deixei-me levar pela imagem da macaíba em minha mão e fui aos poucos desmanchando sua casca com as unhas, sentindo o seu cheiro, admirando sua polpa saudável e me embriagando de maravilhosas lembranças. Minha reação primeira fez lembrar o cão de Pavlov. Fiquei, literalmente, com a “boca cheia d’água”. Fui seguindo a caminhada e operando pacientemente até que metade da polpa já estava descoberta e aí você já pode imaginar o resto: dei uma dentada fenomenal na macaíba e pra quem conhece já sabe da seqüência. Os dentes grudados, a polpa babosa da macaíba se misturando com a saliva, a retirada de um pequeno pedaço, as fibras entranhadas entre os dentes e até agora o sabor memorável espalhado na boca. Não segui o roteiro completo da infância que seria: brincar um pouquinho com a macaíba substituindo uma bola ou tentar fazer uns malabarismos circenses com as mãos (ah, se fossem duas!), quebrar a casca, roer a polpa pacientemente até deixar o coquinho à mostra e ao final, munido de uma pedra razoavelmente pesada, quebrar o coco e se deliciar com a amêndoa complementando a farra. Tive que parar pra cuidar da vida. Aliás, até então eu não fazia outra coisa a não ser cuidar da vida, da boa vida guardada no baú de relembranças sensoriais, o gosto da meninice, as molecagens pelas ruas, monturos e matos de Juazeirinho, a maravilhosa liberdade (vigiada) que tínhamos quando a violência não fazia parte do cotidiano das crianças, podíamos correr livremente pelo mundo desenhando mapas imaginários, imitando faroestes do cinemascope, ou subindo em árvores, ou caçando ninhos de passarinhos, ou atirando de balinheira em calangos e lagartixas, ou em garrafas transformadas em alvos, ou apenas admirando os vôos rasantes dos bandos de andorinhas nos inícios das manhãs invernosas do cariri. A caminhada foi um sucesso. A viagem foi fantástica. O dia será de êxito. Estou vivo! Espero ter tempo e disposição pra encarar em breve a proposta da Rua JG.

18 de abril de 2007

O RITMO DA CHUVA

No final dos anos 70, quando me entendi de gente, ouvia e repetia ao violão coisas como essas: “Olho para a chuva que não quer cessar / Nela vejo meu amor...”, cantava Demétrius, enquanto Jorge (ainda apenas) Ben avisava que iria fazer uma prece pra Deus Nosso Senhor “... pra chuva parar / de molhar o meu divino amor”. Depois vem Hildon dizendo que qualquer lugar serviria: “Na rua, na chuva, na fazenda / Ou numa casinha de sapê”, pra ter o seu sonho de amor realizado. Já nos 80, no samba, Beth Carvalho gingava “A chuva cai lá fora / Você vai se molhar / Já lhe pedi não vá embora / Espere o tempo melhorar / Até a própria natureza / Está pedindo pra você ficar”. A canção é de autoria de Argemiro e Casquinha, da velha-guarda da Portela. Faria aqui uma lista quase sem fim de letras de canções belíssimas que recorrem ao tema chuva, relacionada quase sempre ao amor, nostalgia, saudade e, no caso da música regional nordestina, inevitavelmente, à seca. Vejam-se, por exemplo, o vasto repertório do Rei Luiz Gonzaga, de Dominguinhos e dos novos compositores como Maciel Melo, Petrúcio Amorim, Flávio Leandro, somente pra citar alguns de que mais gosto. Lobão, hoje bem mais conhecido pela acidez de suas críticas ao establishment musical, já pariu versos bucólicos e de um lirismo incomum em sua obra, de fazer inveja aos românticos dos anos 50. Quando puder, escute a bela canção. Veja e tire suas conclusões: “A chuva cai chorando/ E o meu amor vai e vem/ No céu, no chão/ A rede vai me vai levando/ A noite além da noite/ Me faz lembrar o que eu não vivi/ Toda essa história esse segredo/ Memórias num vendaval/ Pela estrada enquanto eu passo/ O cinema é só ilusão/ Vou chorando pelo campo/ No meio do temporal/ A chuva dá saudades/ De um lugar que eu nunca fui/ E o vento vai soprando/ Um choro tão distante/ Pela estrada enquanto eu passo/ O cinema é só ilusão/ Vou chorando pelo campo/ No meio do temporal.” Na verdade, puxei o assunto pra lembrar do quanto já ‘viajei’ em sonhos chuvosos, do quanto a imagem poética da chuva já mexeu com meus sentimentos até mesmo gerando alguns esboços de poemas que um dia, quiçá, virão a lume. Ouvi no rádio o que já havia confirmado em minha breve caminhada matinal e desde ontem já observava: o tempo está nublado na Serra da Borborema e traz bons presságios. Tão bons quanto um nambu cantando na capoeira ou um casal de rolinhas entoando seu canto melancólico do alto de um umbuzeiro já quase desfolhado lá pelas brenhas do eu cariri. A chuva traz saudades, revolve reminiscências e papéis amarelados, sonhos de barquinhos de papel em uma corredeira de meio-fio, uma biqueira de quintal ou um meio de rua em Juazeirinho, um carnaval adolescente, um açude sangrando, a babugem crescendo nas capoeiras, o juremal verdejando as serras antes cinzentas e o frio chegando. Saudades de uma Campina Grande menos quente, de um planeta terra mais amigável pra se viver, de um sereno curtido ao som de uma serenata e uns goles de “Mazile” ou “Casa Grande” com coca-cola, de uma madrugada esticada prum inevitável abraço no sol... Como bom defensor da tese que o melhor tempo é hoje, não devo lamentar o presente. Mas, ainda assim, não posso deixar de confessar que, pelas minhas pesquisas empíricas, a chuva e a noite, mais que o sol e o dia, sempre inspiraram mais os poetas e compositores. E por que não dizer, também, os amantes? Eis um poeminha sem data ou título, escrito há uns 15 anos. Torrencialmente chove. Pela rua, a aura do desejo esvai numa exasperação dorida. Cântico dolente fere o ar. É tarde, tarde, tarde...