28 de maio de 2025

A Sombra que Segue em Mim


Quarenta e oito anos se passaram, mas o cheiro do café da madrugada, o sussurro no ouvido chamando, “Antõe Guede, olha a caça!” e o tilintar da cartucheira ainda ecoam em mim como um chamado silencioso. Meu pai partiu num dia como este, deixando para trás um menino de quatorze anos que, de repente, teve que aprender a andar sem a grande sombra que o guiava. Hoje, com doze anos a mais do que ele tinha quando se foi, descubro que essa sombra nunca realmente me abandonou – apenas se fundiu à minha própria.

Lembro das nossas caçadas antes do sol nascer, quando o mundo ainda era feito de mistérios e a caatinga respirava segredos. Eu, de baladeira em punho, seguia seus passos como um aprendiz de vida, pisando o mesmo cascalho que ele pisava, enfrentando os mesmos medos – das cobras que eu imaginava, penduradas nas árvores, dos fantasmas que minha mente infantil inventava. Ele não me ensinou apenas a caçar ou pescar; me ensinou a ler o silêncio, a decifrar os sinais do mato, a entender que a sobrevivência muitas vezes vem com suor e paciência. Cada pássaro abatido em pleno voo, cada peixe fisgado no riacho raso ou no açude, não era só alimento – era uma lição de resistência.

Seu cheiro – uma mistura de poeira, suor e cigarro – ainda habita minhas memórias como um perfume sagrado. Lembro das espinhas e cravos que espremia em suas costas largas, da cartucheira na cintura, do jeito meticuloso como preparava cada expedição, por mais simples que fosse. Naquela época, eu não sabia que esses momentos se tornariam tatuagens eternas num local que, por falta de melhor definição, eu chamo de alma. Hoje, quando fecho os olhos, vejo suas mãos calejadas amarrando anzóis e tecendo as malhas de uma tarrafa, seu sorriso contido quando eu acertava um alvo difícil.

Não sei como seria minha vida se ele tivesse ficado. Talvez mais leve, talvez mais dura – não importa. O que sei é que ele nunca realmente se foi. Vive nas minhas escolhas, nos meus dilemas, na pergunta que sempre faço: "O que ele pensaria disso?" Às vezes, sinto sua voz sussurrando conselhos, outras vezes, uma repreensão silenciosa quando enveredo por caminhos tortuosos. Ele se tornou minha bússola moral, um farol que, mesmo invisível, nunca deixa de iluminar.

E assim sigo, carregando-o dentro de mim – não como um peso, mas como uma força. Gratidão não é a palavra certa; é algo mais profundo, mais visceral. É a certeza de que, mesmo sem querer, ele me moldou não apenas com suas palavras, mas com seu exemplo. Até mesmo o violão, eu aprendi a tocar como uma resposta a ele, que não quis ensinar aos filhos a arte que ele mesmo abandonou. E se hoje sou quem sou, é porque um dia fui o menino que caminhava atrás dele, tentando pisar nas mesmas pegadas. A vida o levou cedo demais, mas ele conseguiu, em tão pouco tempo, plantar em mim raízes que nem o tempo conseguiu arrancar. E enquanto eu viver, ele também viverá – não como saudade, mas como presença. Afinal, os pais nunca morrem. Apenas se tornam parte do vento que a gente sente nas costas, empurrando a gente para frente.


Rangel Junior



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