22 de outubro de 2006

A MORTE BATE À NOSSA PORTA

Amigo e amiga que me lê: você já pensou em quando poderá ser o dia de sua morte? Já pensou que poderá ser exatamente agora, no momento exato em que você lê este pequeno e despretensioso escrito? Não se assuste, por favor! Não pretendo causar pavor, apenas provocar. Imagino o que pode pensar da morte um garoto de 14 anos. Eu, quando tinha essa idade, tinha três registros marcantes sobre a cuja. Minha avó Paulina na cama, um ronco esquisito, o movimento angustiado de pessoas entrando e saindo, os netos retirados do quarto às pressas, Seu Zé Braz `voando` pra Soledade no Opala de Dona Alzira em busca do Dr. Teodomiro, o retorno, o inevitável e definitivo diagnóstico. Josebel era um garoto loirinho, meio tímido e sentava ao meu lado no colégio, naquelas carteira duplas, boas pra fazer amizade ou rixa. A correria na hora da entrada do colégio, o burburinho, a notícia da fatalidade: ia pro colégio e deu uma fugidinha pra tomar um banho na ponte, uma mergulho, a cabeça numa pedra, uma vida verdinha ainda indo embora, o vazio na minha carteira escolar, o assombro por muitos dias, o costume da ausência. Aos 14 anos, eu ajudava nas tarefas domésticas e Dona Neide estava em Campina acompanhando Seu Tonito, meu pai, que estava internado na Casa de Saúde Dr. Brasileiro, vítima de infarto. Dona Maria de Jaime bate à porta, estou varrendo a sala, ela me diz que não traz boas notícias. Um calafrio, uma `marretada no juízo`, uma voz dentro de mim ecoando... papai morreu! Tive que arrumar a casa toda pra receber as `visitas` fúnebres. Hoje, estou pra completar 44 e já vi muito desmantelo. Como dizia meu mapa astral, eu deveria ser marcado por Plutão, o planeta da morte, o `deus do inferno`. Não sei agora, que baixaram a patente do meu astro, se ainda está valendo. Continuo o processo de me avezar com a morte, mas sempre me deparo com um choque entre a aceitação e o estranhamento, a relativa naturalidade e o processamento do luto. A professora Eliane Pinto, fisioterapeuta, trazia sempre no rosto um largo e permanente sorriso. Tinha um jeito peculiar de sorrir, claro, sempre que abordada. Um sorriso de aparência tímida, mas sempre sorriso, sempre anunciando alegria, abertura pro mundo. Não fui seu aluno, convivi pouco com ela, mas tenho dela essa afável relembrança. Pois a professora foi visitar a mãe e, ao sair da casa materna, foi abordada por um garoto de 14 anos que, em vez de pedir-lhe ajuda, de revólver em punho, disparou-lhe um tiro que entrou-lhe pelo nariz quase sem deixar marca. O marido estava sendo assaltado e ela, ao que parece, não entendeu. Não havia reagido senão com o habitual espanto de quem se vê numa situação estranha. Morreu rapidamente, pois o projétil atravessou-lhe o cérebro. O garoto, sabe-se agora, já tinha outros feitos dessa ordem em seu currículo, ou pelo menos participou de outros. Fico imaginando o que poderia se passar na cabeça de um garoto de 14 anos acerca da morte, do que seria a morte. O que seria pra ele morrer ou matar? Eu, um incorrigível defensor da vida, fico me perguntando: o que poderia se passar na cabeça de um garoto de 14 anos ao ter em suas mãos a possibilidade de tirar uma vida? Talvez se tivesse a possibilidade de dar vida a alguém não fizesse diferença. Um pensamento incômodo me assalta cotidianamente. Questiono sempre onde vamos parar com essa história de tão pouco valor dado à vida humana. Mata-se gente na rua como antigamente a gente matava passarinho no mato, às vezes pra testar a pontaria, pra ver a queda. Já escapei de dois assaltos e me sinto mais ou menos treinado para reagir (ou melhor, não reagir) com certa e dosada tranqüilidade numa situação dessas pra que o indivíduo nem tenha medo de mim, nem me ache seguro demais e pense que vou reagir, leve tudo e me deixe a vida, a única que tenho. Em meu primeiro assalto (não sei se é assim que devo dizer!) o sujeito me deixou deitado no chão, submetido como a mais vil criatura, um clic seco de um revólver sendo engatilhado, o frio do metal encostado em meu pescoço, próximo à nuca, um pedido desesperado de calma de “não faça isso”! Pelo atrevimento tomei um chute nas costelas que deixou o solado do tênis desenhado em minha camiseta branca, Dona Neide levou aquele tradicional insulto e eu carreguei no corpo alguns dias de dor. O primeiro a gente não esquece. Na segunda vez em que fui assaltado, no interior de um ônibus de viagem, em plena madrugada, acordei sobressaltado com o carro dentro do mato e o burburinho dos passageiros: calma, não reaja, é um assalto! Meia dúzia de sujeitos mascarados nos ameaçando a todos com seus revólveres e um deles, se engraçou de mim e resolveu encostar o 38 em meu estômago. Como não conseguia abrir minha mochila foi ficando irritado (não sei se devo dizer assim!) e ante minha tranqüila oferta para ajudá-lo, deu-me uma pancada na chamada “boca do estômago” que não contive o grito de dor e pavor. Ele me levou um velho celular, algum dinheiro, documentos e quase tudo que eu tinha. Fiquei feliz, pois o tal me deixou o principal, a vida. Chego em casa um pouco assustado pra abrir o portão à noite. Saio do banco tenso com medo de um sujeito pensar que vim de lá com grana. Paro numa barreira policial desconfiado pensando que podem ser bandidos disfarçados. Não ando mais à noite, pois o sossego foi embora e não é mais possível como antigamente que você poderia voltar da casa da namorada feliz, relaxado e a pé. E ainda caminhando com um sapato cavalo de aço. A vida está valendo bem pouquinho mesmo. Por isso, me parece, ela deve ser mais valorizada ainda. Ah, se aquele garoto tivesse a chance de aprender. Será? Saudades de Cazuza. “Ah, que tempo mais vagabundo é esse que escolheram pra gente viver?"Como dizia o poeta Chico Passeata, “se a vida / é uma só / por pior que seja / é a melhor.” Viva, meu amigo! Viva intensamente! Viva e sorva com calma, saboreando, cada gole de vida de que disponha. Amanhã ainda não é

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