15 de outubro de 2007

A CAIXA DE BRINQUEDOS

A minha amiga psicóloga Socorro Dantas me presenteou com este belo texto do educador Rubem Alves, como parte de sua referência pela passagem do Dia do Professor. Não conhecia. Agradecido e emocionado decidi de pronto: publico o texto na íntegra. "A idéia de que o corpo carrega duas caixas —uma caixa de ferramentas, na mão direita, e uma caixa de brinquedos, na mão esquerda— apareceu enquanto eu me dedicava a mastigar, ruminar e digerir santo Agostinho. Como você deve saber, eu leio antropofagicamente. Porque os livros são feitos com a carne e o sangue daqueles que os escrevem. Dos livros, pode-se dizer o que os sacerdotes dizem da eucaristia: "Isso é o meu corpo; isso é a minha carne". Santo Agostinho não disse como eu digo. O que digo é o que ele disse depois de passado pelos meus processos digestivos. A diferença é que ele disse na grave linguagem dos teólogos e filósofos. E eu digo a mesma coisa na leve linguagem dos bufões e do riso. Pois santo Agostinho, resumindo o seu pensamento, disse que todas as coisas que existem se dividem em duas ordens distintas. A ordem do "uti" (ele escrevia em latim ) e a ordem do "frui". "Uti" significa o que é útil, utilizável, utensílio. Usar uma coisa é utilizá-la para obter uma outra coisa. "Frui" significa fruir, usufruir, desfrutar, amar uma coisa por causa dela mesma. A ordem do "uti" é o lugar do poder. Todos os utensílios, ferramentas, são inventados para aumentar o poder do corpo. A ordem do "frui" é a ordem do amor —coisas que não são utilizadas, que não são ferramentas, que não servem para nada. Elas não são úteis; são inúteis. Porque não são para serem usadas, mas para serem gozadas. Aí você me pergunta: quem seria tolo de gastar tempo com coisas que não servem para nada? Aquilo que não tem utilidade é jogado no lixo: lâmpada queimada, tubo de pasta dental vazio, caneta sem tinta... Faz tempo, preguei uma peça num grupo de cidadãos da terceira idade. Velhos aposentados. "Inúteis" —comecei a minha fala solenemente. "Então os senhores e as senhoras finalmente chegaram à idade em que são totalmente inúteis..." Foi um pandemônio. Ficaram bravos, me interromperam e trataram de apresentar as provas de que ainda eram úteis. Da sua utilidade dependia o sentido de suas vidas. Minha provocação dera o resultado esperado. Comecei, mansamente, a argumentar. "Então vocês encontram sentido para suas vidas na sua utilidade. Vocês são ferramentas. Não serão jogados no lixo. Vassouras, mesmo velhas, são úteis. Uma música do Tom Jobim é inútil. Não há o que fazer com ela. Os senhores e as senhoras estão me dizendo que se parecem mais com as vassouras que com a música do Tom... Papel higiênico é muito útil. Não é preciso explicar. Mas um poema da Cecília Meireles é inútil. Não é ferramenta. Não há o que fazer com ele. Os senhores e as senhoras estão me dizendo que preferem a companhia do papel higiênico à do poema da Cecília..." E assim fui acrescentando exemplos. De repente os seus rostos se modificaram e compreenderam... A vida não se justifica pela utilidade, mas pelo prazer e pela alegria —moradores da ordem da fruição. Por isso Oswald de Andrade, no "Manifesto Antropofágico", repetiu várias vezes: "A alegria é a prova dos nove, a alegria é a prova dos nove...". E foi precisamente isso o que disse santo Agostinho. As coisas da caixa de ferramentas, do poder, são meios de vida, necessários para a sobrevivência (saúde é uma das coisas que moram na caixa de ferramentas. Saúde é poder. Mas há muitas pessoas que gozam de perfeita saúde física e, a despeito disso, se matam de tédio). As ferramentas não nos dão razões para viver; são chaves para a caixa dos brinquedos. Santo Agostinho não usou a palavra "brinquedo". Sou eu quem a usa porque não encontro outra mais apropriada. Armar quebra-cabeças, empinar pipa, rodar pião, jogar xadrez ou bilboquê, jogar sinuca, dançar, ler um conto, ver caleidoscópio: tudo isso não leva a nada. Essas coisas não existem para levar a coisa alguma. Quem está brincando já chegou. Comparem a intensidade das crianças ao brincar com o seu sofrimento ao fazer fichas de leitura! Afinal de contas, para que servem as fichas de leitura? São úteis? Dão prazer? Livros podem ser brinquedos? O inglês e o alemão têm uma felicidade que não temos. Têm uma única palavra para se referir ao brinquedo e à arte. No inglês, "play". No alemão, "spielen". Arte e brinquedo são a mesma coisa: atividades inúteis que dão prazer e alegria. Poesia, música, pintura, escultura, dança, teatro, culinária: são brincadeiras que inventamos para que o corpo encontre a felicidade, ainda que em breves momentos de distração, como diria Guimarães Rosa. Esse é o resumo da minha filosofia da educação. Resta perguntar: os saberes que se ensinam em nossas escolas são ferramentas? Tornam os alunos mais competentes para executar as tarefas práticas do cotidiano? E eles, alunos, aprendem a ver os objetos do mundo como se fossem brinquedos? Têm mais alegria? Infelizmente, não há avaliações de múltipla escolha para medir alegria..." DIZER O QUE DEPOIS DISTO? UM ABRAÇO GRANDE ÀS (E AOS) COLEGAS DE BATENTE.

2 comentários:

Unknown disse...

Caro Professor,
Parabéns, mais uma vez, por ter a sensibilidade de publicar no blog um texto digno de ser socializado!
Acabei 'pegando carona' no teu espaço, e fico feliz de poder ampliar para o universo infinito da net, a minha admiração e o meu respeito por todos aqueles que fazem da docência um exercicio diário de descobertas. Para além do puro romantismo, vamos comungar com a imortal Cora Coralina: "Feliz aquele que transfere o que sabe, e aprende o que ensina."

Anônimo disse...

Tempo desses circulava uma revista “de Psicologia” (sic) que se chamava Luta e Prazer. Encerrando esta verdade: viver é carregar as duas caixas, a de ferramentas e a de brinquedos. Cabe a cada um de nós saber fazer o tempero justo. Trabalhar, “dar duro” e gozar a vida, brincar. Tudo isso tá aí - a um palmo da venta.

Danado é que pros mortais isto foge ao controle: vivemos numa sociedade (de exploração) de classes que impõe –pela ideologia– que viver é lutar (estar em guerra permanente para conquistar o pão de cada dia...), trabalhar, esforçar-se (parecido com esfolar-se)... pois bem, até (cristãmente) sacrificar-se, imolar-se e, daí, se ganha a salvação, a felicidade eterna. Nossa sociedade impõe esse critério: ou vc. se esburracha em atividades estafantes, incessantes e (moto) perpétuas ou vc. é um fraco, derrotado, pobre-coitado.

Imagina parar para gozar a vida. Vira boêmio, malandro, vagabundo. Quem quer ser ? Aí, bons moços, devemos abandonar a caixa de brinquedos. Fugir dela como Zebedeu foge da cruz. O sacrifício (a estafa) é o caminho da eterna bondade-felicidade.

Esquecemos que não somos eternos (espaço reservado aos poetas e profetas), caímos na armadilha e não balizamos as duas caixas. Cumprindo os desígnios do sistema hoje formatado, a maioria caminha rumo ao poente-ocaso esbaforida no fogaréu da insensatez laboriosa com carga-horária exasperante (acreditando cumprir uma sina) para alguns “arruinarem” sua existência na orgia.

Balizar caixa de ferramenta (trabalho) com caixa de brinquedo (lazer) eis a questão.
A beleza está no texto do Rubens Alves e nos textos do http://rangeljunior.blogspot.com.

abraços,
benjamim.