7 de setembro de 2025

A Cidadania Não se Curva: Um Grito do 7 de Setembro

Hoje, a retrospectiva é um espelho implacável. Ele reflete não apenas o que fomos, mas as cicatrizes que a história deixou na nossa memória coletiva. Lembro-me das aulas de Moral e Cívica, da rigidez que moldava a infância em um molde de ferro, onde éramos enfileirados como sementes em uma plantação monocultora. Ali, o hino nacional não era uma canção de pertencimento, mas um mantra imposto, e a continência à bandeira não era um gesto de reverência, mas a simulação de uma disciplina que pretendia esmagar a individualidade. Era a negação do pensamento crítico, a tentativa de forjar autômatos, cujas mentes deveriam apenas ecoar as verdades oficiais e as leituras obrigatórias, como pássaros em uma gaiola dourada.

Aquele tempo, sob o manto de uma ditadura civil-militar que rasgou o tecido de uma democracia legitimamente eleita, era o deserto onde a liberdade de expressão não encontrava solo para germinar. Professores e professoras, silenciados por um roteiro inquebrável, eram meros condutores de uma narrativa única, proibidos de dar voz a qualquer desvio. O ar era pesado, carregado não apenas com a violência explícita das baionetas, mas com uma violência mais insidiosa, a da ideologia que se infiltrava em cada sala de aula, em cada lar, tentando reescrever o destino de uma nação à força.

Não é de hoje que o Brasil convive com fantasmas que se recusam a descansar. As mesmas teses surradas dos anos 20, 30 e 50, como ervas daninhas, ressurgiram para justificar o golpe de 1964. Seus arquitetos, já derrotados em tentativas anteriores, foram fortalecidos não por um ideal, mas pela impunidade de uma anistia conveniente e uma conciliação superficial. Esse perdão, que mais pareceu um salvo-conduto para o retorno, cimentou a crença de que a violência e a ilegalidade seriam sempre recompensadas, e que a história, para alguns, é apenas um ciclo de impunidade à espera de um novo turno.

Essa semente do ressentimento, regada por anos no subterrâneo, tentou florescer novamente em 2023, e segue brotando em tentativas diárias. O discurso de "anistia" hoje é a mesma máscara de sempre, uma cortina de fumaça para ocultar a preparação de um novo golpe, para armar seus defensores e formar milícias com a intenção de derrubar a ordem democrática. É a mesma trama, os mesmos personagens, alguns com as mesmas fardas, outros recém-incorporados, unidos por um único e avesso ideal.

A verdade que emerge desta memória é que os amantes da ditadura, da violência e do ódio nunca almejaram a construção de uma nação unida. Eles se alimentam da discórdia, prosperam no caos e têm como único horizonte a manutenção de um poder que oprime, que divide e que se sustenta não em pilares de justiça social, mas sobre os escombros dos sonhos e da dignidade popular. Seu projeto não é o de um país melhor para todos, mas o de um Brasil de poucos, amarrado a um passado sombrio e autoritário.

É imperativo que não esqueçamos. Que a memória seja nossa bússola e o passado nosso mestre. A verdadeira independência, a pátria que almejamos, não pode ser construída sobre o silêncio e o medo, mas sobre a voz firme e a participação ativa de cada cidadão. Que o respeito à vida e a busca incessante pela justiça social sejam as marcas do nosso horizonte. Que a política seja mais que um jogo de poder e se torne a arte de servir e de cuidar, onde os eleitos são reflexo do povo que os escolhe.

Que as ruas, as praças e as urnas se tornem o espaço sagrado onde a cidadania se manifesta em sua plenitude. Conclamo a todos: que a luta por um Brasil verdadeiramente livre, justo e soberano seja um compromisso diário. Que o povo se veja como o único dono de seu destino, e que a participação popular seja o rio que move os destinos do país. A nossa história está sendo escrita agora, com cada ação e cada escolha. Que ela seja uma crônica de liberdade e justiça.

Golpe nunca mais!

Ditadura nunca mais!

3 de julho de 2025

Ode Junina à Velhice Precoce – Ou Quando o Forró Virou Só "Etc." *


Lá fui eu, como um sanfoneiro perdido num festival de DJs, ao tal show sertanejo no meio da festa do São João. A plateia pulava como milho em óleo fervente, enquanto eu, feijão sem charque ou torresmo, ficava ali, murcho, tentando entender quando é que "piseiro" e "brega-funk" viraram parte do cardápio junino. Cantavam todos em uníssono, como se aqueles versos fossem orações de um novo credo — e eu, o herege, procurando em vão uma só música que lembrasse o cheiro de fogueira e o ranger da sanfona de verdade.

A velhice chegou sem pedir licença, mas não trouxe rugas — trouxe espanto. Não é que eu seja contra mudanças (até o baião já foi novidade um dia), mas cadê o respeito pela raiz? Virou moda chamar qualquer batida eletrônica com chapéu de palha de "forró moderno". Até o triângulo, coitado, foi aposentado por uma caixa de ritmos. E o pior: ninguém parece notar que, nessa "evolução", a festa está virando um Frankenstein cultural — nem junina, nem festa, só um amontoado de modismos sem identidade.

Dizem que tradição não é museu. Concordo! O xote pode ganhar novos arranjos, o bolo de milho pode ter seu toque gourmet, mas e quando a essência vira acessório? Quando o São João vira só um "tema" para qualquer música genérica? Não se trata de ser saudosista — é sobre não deixar que o falso multiculturalismo apague uma cultura inteira só pra caber no algoritmo. Porque, convenhamos: ninguém chama samba e frevo de "pagode-trap" no Carnaval, nem transforma a feijoada em sushi de feijão. Por que o forró tem que virar "sertanejo com sanfoninha de fundo"?

Vejo contradições por todo lado: enfeitam os arraiais com bandeirolas e balões, mas o som é o mesmo de qualquer balada de shopping. Vendem quentão "artesanal" em copo descartável, com direito a hashtag, mas a fogueira é cenográfica e o milho de espiga — aquele que ensinou a gente a dividir — virou item raro, substituído por pipoca de micro-ondas "estilo roça". E as quadrilhas? Se antes eram brincadeiras desengonçadas de comunidade, hoje parecem competições, em grande parte, de coreografias pasteurizadas, como se a graça estivesse nos likes, não na risada. Estas até cabem na festa, mas, e as tradicionais? Cadê?


Claro que a festa pode (e deve) se renovar. Mas renovação não é sinônimo de apagamento. O frevo não deixou de ser frevo por causa da guitarra elétrica, e o coco não perdeu sua alma quando ganhou novos instrumentos. Por que, então, o forró precisa ser diluído até virar só mais um ritmo genérico no meio de tantos? Não se trata de impedir a mistura, mas de lembrar que uma festa regional não é um delivery cultural — não dá pra pedir "um pouco de tudo" e achar que o resultado ainda é São João.


Então, se a velhice chegou, que ela me traga pelo menos a coragem de dizer: não é frescura querer um São João com identidade. Que a modernidade venha, sim, mas como a lenha que alimenta a fogueira — sem apagar o braseiro da tradição. Porque o que arde não é só o fogo, mas a paixão por uma festa que, no fundo, nunca foi só música ou comida: foi pertencimento.  

Viva São João! Que ele continue cheirando a fogueira, e milho assado e a sanfona desafinada — mesmo que, pra alguns, isso já soe como "coisa de velho". Melhor ser velho com raízes do que moderno sem história. E que, no grande arrasta-pé da vida, a gente nunca troque o compasso do xote pelo clique digital de um player qualquer.


* Texto escrito em parceria com Múcio Paz.

Foto: Marcelo Jr.

Publicada originalmente em www.polemicaparaiba.com.br

3 de junho de 2025

A Bicicleta: Minha Máquina do Tempo e da Liberdade



Três de junho. No calendário, pode parecer apenas mais um dia qualquer, escorregando entre as semanas como um pneu murcho. Entretanto, para os que já sentiram o vento fresco no rosto e a euforia liberadora nos pedais, essa data evoca algo mais profundo. É o Dia Mundial da Bicicleta, e com ele, um convite silencioso para revisitarmos não apenas as ruas da cidade, mas também as avenidas sinuosas da memória, as trilhas da reflexão e os atalhos insuspeitos da emoção. A bicicleta, em sua simplicidade mecânica, revela-se uma máquina surpreendente, capaz de nos transportar para o passado, redesenhar o presente e até mesmo inspirar um futuro mais leve e cheio de giros.


Ah, os primeiros pedais! Lembro-me do cheiro de terra molhada em Juazeirinho, na minha quase adolescência, sem a menor chance de possuir uma bicicleta, mas com a cabeça borbulhando em sonhos. Aprendi a pedalar em relíquias alugadas, distantes de casa, é verdade, mas que para mim, eram as mais belas das máquinas voadoras. Seus arranhões na pintura contavam histórias de tombos monumentais e superações que hoje ainda devem render boas gargalhadas, enquanto o selim surrado e o guidão torto eram os troféus de centenas de pedaladas alheias.

Minhas primeiras quedas em ruas descalças, cheias de pedregulhos e valetas sorrateiras, foram como comédias trágicas em capítulos. A minha primeira bicicleta, aquela que era de fato minha, só veio me encontrar aos trinta e poucos anos, uma espera que, felizmente, meus filhos não precisaram enfrentar, pois tiveram a sorte de possuir mais de uma, desde a mais tenra infância. Afinal, como dizem por aí, há o tempo de cada um e o tempo das coisas, uma máxima que se aplica tanto às duas rodas quanto à vida.


Hoje, aos sessenta e dois anos e com um fôlego que desafia o tempo, tenho a felicidade de possuir minha própria bicicleta e a saúde necessária para cortar estradas de chão e veredas apertadas, conhecidas como single tracks, ou até mesmo os estradões sem fim e o asfalto tranquilo das ruas da cidade num domingo bem cedinho, buscando lugares onde meus pneus jamais ousaram tocar. Observar o mundo passar de cima de duas rodas é uma experiência em alta definição. Você sente a textura da calçada sob os pneus, o grafite escondido na parede antiga, o cheiro inebriante do pão recém-assado da padaria, do café passado na hora numa casa de sítio a beira da estrada ou um guisado que foi ao fogo desde cedo.

Considero este um ato de resistência pacífica contra a pressa que nos engole, uma forma poética de redesenhar a cidade a cada pedalada, traçando rotas alternativas e descobrindo atalhos que só um ciclista de alma livre é capaz de enxergar. A bicicleta, nesse contexto, torna-se um convite para a liberdade, a simplicidade e uma conexão profunda com o ambiente, um brinde à vida que pulsa para além dos engarrafamentos e das telas.


Porém, o melhor de tudo não está apenas na máquina, mas na magia que ela cria: ter um grupo de amigos que se equilibram na vida com a mesma destreza de quem está sobre duas rodas. Acelera, reduz, pedala mais um pouco, freia gentilmente, toma um susto, segura a respiração numa descida mais íngreme, sofre (e muito!) do meio para o final de uma subida que parece não ter fim.  Ainal, a vida é mesmo assim: toda grande descida terá uma subida logo na sequência, e tudo o que sobe desce, diria a sabedoria popular. Encaramos também o trânsito caótico da cidade e alguns motoristas menos atenciosos ou respeitosos com os ciclistas,

No meio do mato, um pneu furado, um probleminha aqui e outro acolá, um tombo, uma queda mais forte… nada disso retira o desejo incontrolável de surfar sobre duas rodas, sentindo o vento no rosto, uma chuvinha fina embaçando os óculos, o sol quente de alguma manhã de verão que nos queima a pele, mas aquece a alma. As paradas estratégicas para hidratação, os risos soltos e os abraços apertados entre os amigos, como fazemos sempre todas as semanas, duas ou três vezes, com o impagável Grupo Dirty Riders MTB, em Campina Grande. Um pedal mais longo, a exaustão premiada com um isotônico gelado, uma água de coco revigorante ou até, em algumas ocasiões memoráveis, ao final do pedal, uma cerveja bem gelada, um brinde sonoro à vida, à amizade que nos sustenta e à nossa inabalável alegria de viver.

2 de junho de 2025

O Enigma dos Bebês Reborn: Entre o Afeto e o Alerta


Sempre achei fascinante como a gente, bicho humano, se vira para ter companhia. Desde que o mundo é mundo, ou pelo menos desde que a gente aprendeu a domesticar uma galinha, inventamos ou escolhemos seres que não são gente para estar por perto. Bichos de estimação, aqueles que hoje chamamos carinhosamente de pets – e que muitas vezes são mais família que qualquer parente chato de Natal ou Ano Novo–, são um capítulo à parte. Eles dão e recebem afeto à maneira deles, com um balançar de rabo ou um miado manhoso.

Mas a coisa muda de figura quando falamos de objetos inanimados. Ah, os bonecos! Desde as calungas de pano até o robô supertecnológico que promete nos substituir em tudo, menos no cafuné. Na infância, esses companheiros de brincadeira são os famosos objetos transicionais de Winnicott. Um ursinho puído, uma boneca sem um olho, são mais que brinquedos; são pontes para a criança se descobrir e lidar com o mundo. Lembro das minhas amigas com aquelas bonecas de plástico que choravam um "éééé" robótico ao serem inclinadas e uma outra boneca que revirava os olhos e os fechava quando deitada. Era o máximo da tecnologia da época, um choro mecânico, sem a menor chance de ser confundido com um bebê de verdade.

E aí chegamos aos bebês reborn, esses bonecos incrivelmente realistas que, confesso, às vezes me dão um nó na cabeça e até um certo medo. Não são novidade do século XXI, mas agora estão em todas as manchetes. E a primeira pergunta que me faço é: qual o problema? Criança brincar com boneco, seja ele realista ou não, é parte do desenvolvimento. Adulto guardar o ursinho de pelúcia da infância? Absolutamente nenhum problema! Dialogar com o gato, com a samambaia ou a flor do deserto... isso não é aberração, é só um jeito de extravasar, de atribuir afeto onde ele pode ser bem-vindo.

O xis da questão começa quando a consciência sobre o que é o boneco se dilui. Se uma pessoa adulta usa um bebê reborn como brinquedo e tem plena consciência de que aquilo é silicone e tinta, sem problema algum. Inclusive, muitas vezes pode ser um grito silencioso por ajuda, uma forma de lidar com alguma dor ou vazio. E nesses casos, em vez de apontar o dedo ou soltar um comentário debochado, o ideal é oferecer um ombro e talvez sugerir uma conversa com alguém que entenda do riscado. Afinal, a gente precisa de ajuda, e não de escárnio, quando a realidade parece pesada demais.

O "problema" com P maiúsculo surge quando a coisa transborda do universo particular para o coletivo. É quando o dono do bebê reborn não quer mais apenas brincar, mas exige que outras pessoas entrem na sua "viagem", que tratem o boneco como um ser humano de verdade. Aquele "querer que os outros vejam o que só eu vejo" é um sinal de alerta. Se começo a conversar com um ser imaginário e insisto que você, caro leitor, também dialogue com ele, bem, aí a fronteira entre o privado e o público foi cruzada. E, convenhamos, exigir que o SUS dê tratamento para um boneco, como vimos em notícias recentes – e estamos falando de junho de 2025, viu? – é um indicativo de que algo está seriamente desajustado.

No fundo, como tudo que surge e vira moda, essa "onda" dos bebês reborn também terá seu ápice e seu declínio. Ficarão as memórias e, talvez, o uso por aqueles que ainda estão buscando um equilíbrio mais saudável na relação com o mundo. Porque, no final das contas, o delírio individual, por mais que possa ser um mecanismo de defesa, não pode virar um delírio coletivo. Aí, nem psicólogo, nem psiquiatra, nem a melhor farmacologia do mundo daria conta de cuidar e organizar. O importante é manter os pés no chão, mesmo que o coração esteja nas nuvens com um "boneco realista" nos braços.

Ah, uma vez que as palavras servem para nomear as coisas, penso que a expressão "boneco realista" descreve muito melhor o objeto (isso mesmo).

29 de maio de 2025

Marcas dolorosas e invisíveis: a violência nossa de cada dia


Foto: Ibraheem Abu Mustafa/ReutersREUTERS/Ibraheem Abu Mustafa

A violência é uma cicatriz que o tempo não apaga, apenas atenua. Lembro-me das duas vezes em que fui assaltado em Fortaleza, revividas agora ao ler o relato da professora Fernanda Leal. Na primeira, dentro de uma locadora, a arma apontada, o chute nas costas, o tiro que ecoou a centímetros da minha cabeça. Na segunda, dentro de um ônibus, o cano frio do revólver pressionando meu abdômen. Anos se passaram, mas o corpo ainda guarda a memória do medo. Superei o trauma ao enfrentá-lo, disparando um revólver em um clube de tiro, com um instrutor ao lad, eu com dificuldade para segurar a arma, imagine acionar o gatilho e depois conseguir fazê-lo por mais vezes, até que o pavor virasse apenas lembrança. Mas quantos carregam essas marcas sem jamais se libertarem?  


A violência nos reduz à nossa fragilidade. Humilha, paralisa, rouba mais que objetos — rouba a sensação de segurança. E, no entanto, sei que minha experiência é ínfima perto do que outros sofreram e sofrem: as vítimas da ditadura, torturadas até o delírio ou a morte; as crianças de Gaza, esmagadas sob os escombros de uma guerra sem fim. Se meu trauma foi um rio, o deles é um oceano de dor. E isso revela uma verdade cruel: a violência é uma linguagem universal, mas sua escala define quem somos como humanidade.  


Precisamos de mais que leis — precisamos de um código moral que una povos, que transcenda a Declaração dos Direitos Humanos, ainda tão violada. Um pacto que não apenas condene a barbárie, mas que a impeça de renascer. Porque a violência não é só física: é a fome que corrói, a desigualdade que esmaga, a indiferença que normaliza o sofrimento alheio.  


A paz não será um acaso histórico, mas uma construção diária. Começa com a recusa à naturalização da crueldade, com a empatia que nos faz enxergar no outro um igual. Se meu trauma me ensinou algo, foi que o medo pode ser vencido, mas a injustiça só se dissolve com ação.  


Não basta lamentar. É preciso exigir um mundo onde nenhuma criança precise temer bombas, onde nenhum jovem seja reduzido à escolha entre a arma e a fome. O futuro não será melhor por acidente — será porque o construímos assim. E isso começa hoje, na recusa ao silêncio, na coragem de transformar indignação em movimento. A humanidade já sangrou demais. Proteste! Reclame! Grite! Chega!