3 de junho de 2025

A Bicicleta: Minha Máquina do Tempo e da Liberdade



Três de junho. No calendário, pode parecer apenas mais um dia qualquer, escorregando entre as semanas como um pneu murcho. Entretanto, para os que já sentiram o vento fresco no rosto e a euforia liberadora nos pedais, essa data evoca algo mais profundo. É o Dia Mundial da Bicicleta, e com ele, um convite silencioso para revisitarmos não apenas as ruas da cidade, mas também as avenidas sinuosas da memória, as trilhas da reflexão e os atalhos insuspeitos da emoção. A bicicleta, em sua simplicidade mecânica, revela-se uma máquina surpreendente, capaz de nos transportar para o passado, redesenhar o presente e até mesmo inspirar um futuro mais leve e cheio de giros.


Ah, os primeiros pedais! Lembro-me do cheiro de terra molhada em Juazeirinho, na minha quase adolescência, sem a menor chance de possuir uma bicicleta, mas com a cabeça borbulhando em sonhos. Aprendi a pedalar em relíquias alugadas, distantes de casa, é verdade, mas que para mim, eram as mais belas das máquinas voadoras. Seus arranhões na pintura contavam histórias de tombos monumentais e superações que hoje ainda devem render boas gargalhadas, enquanto o selim surrado e o guidão torto eram os troféus de centenas de pedaladas alheias.

Minhas primeiras quedas em ruas descalças, cheias de pedregulhos e valetas sorrateiras, foram como comédias trágicas em capítulos. A minha primeira bicicleta, aquela que era de fato minha, só veio me encontrar aos trinta e poucos anos, uma espera que, felizmente, meus filhos não precisaram enfrentar, pois tiveram a sorte de possuir mais de uma, desde a mais tenra infância. Afinal, como dizem por aí, há o tempo de cada um e o tempo das coisas, uma máxima que se aplica tanto às duas rodas quanto à vida.


Hoje, aos sessenta e dois anos e com um fôlego que desafia o tempo, tenho a felicidade de possuir minha própria bicicleta e a saúde necessária para cortar estradas de chão e veredas apertadas, conhecidas como single tracks, ou até mesmo os estradões sem fim e o asfalto tranquilo das ruas da cidade num domingo bem cedinho, buscando lugares onde meus pneus jamais ousaram tocar. Observar o mundo passar de cima de duas rodas é uma experiência em alta definição. Você sente a textura da calçada sob os pneus, o grafite escondido na parede antiga, o cheiro inebriante do pão recém-assado da padaria, do café passado na hora numa casa de sítio a beira da estrada ou um guisado que foi ao fogo desde cedo.

Considero este um ato de resistência pacífica contra a pressa que nos engole, uma forma poética de redesenhar a cidade a cada pedalada, traçando rotas alternativas e descobrindo atalhos que só um ciclista de alma livre é capaz de enxergar. A bicicleta, nesse contexto, torna-se um convite para a liberdade, a simplicidade e uma conexão profunda com o ambiente, um brinde à vida que pulsa para além dos engarrafamentos e das telas.


Porém, o melhor de tudo não está apenas na máquina, mas na magia que ela cria: ter um grupo de amigos que se equilibram na vida com a mesma destreza de quem está sobre duas rodas. Acelera, reduz, pedala mais um pouco, freia gentilmente, toma um susto, segura a respiração numa descida mais íngreme, sofre (e muito!) do meio para o final de uma subida que parece não ter fim.  Ainal, a vida é mesmo assim: toda grande descida terá uma subida logo na sequência, e tudo o que sobe desce, diria a sabedoria popular. Encaramos também o trânsito caótico da cidade e alguns motoristas menos atenciosos ou respeitosos com os ciclistas,

No meio do mato, um pneu furado, um probleminha aqui e outro acolá, um tombo, uma queda mais forte… nada disso retira o desejo incontrolável de surfar sobre duas rodas, sentindo o vento no rosto, uma chuvinha fina embaçando os óculos, o sol quente de alguma manhã de verão que nos queima a pele, mas aquece a alma. As paradas estratégicas para hidratação, os risos soltos e os abraços apertados entre os amigos, como fazemos sempre todas as semanas, duas ou três vezes, com o impagável Grupo Dirty Riders MTB, em Campina Grande. Um pedal mais longo, a exaustão premiada com um isotônico gelado, uma água de coco revigorante ou até, em algumas ocasiões memoráveis, ao final do pedal, uma cerveja bem gelada, um brinde sonoro à vida, à amizade que nos sustenta e à nossa inabalável alegria de viver.

2 de junho de 2025

O Enigma dos Bebês Reborn: Entre o Afeto e o Alerta


Sempre achei fascinante como a gente, bicho humano, se vira para ter companhia. Desde que o mundo é mundo, ou pelo menos desde que a gente aprendeu a domesticar uma galinha, inventamos ou escolhemos seres que não são gente para estar por perto. Bichos de estimação, aqueles que hoje chamamos carinhosamente de pets – e que muitas vezes são mais família que qualquer parente chato de Natal ou Ano Novo–, são um capítulo à parte. Eles dão e recebem afeto à maneira deles, com um balançar de rabo ou um miado manhoso.

Mas a coisa muda de figura quando falamos de objetos inanimados. Ah, os bonecos! Desde as calungas de pano até o robô supertecnológico que promete nos substituir em tudo, menos no cafuné. Na infância, esses companheiros de brincadeira são os famosos objetos transicionais de Winnicott. Um ursinho puído, uma boneca sem um olho, são mais que brinquedos; são pontes para a criança se descobrir e lidar com o mundo. Lembro das minhas amigas com aquelas bonecas de plástico que choravam um "éééé" robótico ao serem inclinadas e uma outra boneca que revirava os olhos e os fechava quando deitada. Era o máximo da tecnologia da época, um choro mecânico, sem a menor chance de ser confundido com um bebê de verdade.

E aí chegamos aos bebês reborn, esses bonecos incrivelmente realistas que, confesso, às vezes me dão um nó na cabeça e até um certo medo. Não são novidade do século XXI, mas agora estão em todas as manchetes. E a primeira pergunta que me faço é: qual o problema? Criança brincar com boneco, seja ele realista ou não, é parte do desenvolvimento. Adulto guardar o ursinho de pelúcia da infância? Absolutamente nenhum problema! Dialogar com o gato, com a samambaia ou a flor do deserto... isso não é aberração, é só um jeito de extravasar, de atribuir afeto onde ele pode ser bem-vindo.

O xis da questão começa quando a consciência sobre o que é o boneco se dilui. Se uma pessoa adulta usa um bebê reborn como brinquedo e tem plena consciência de que aquilo é silicone e tinta, sem problema algum. Inclusive, muitas vezes pode ser um grito silencioso por ajuda, uma forma de lidar com alguma dor ou vazio. E nesses casos, em vez de apontar o dedo ou soltar um comentário debochado, o ideal é oferecer um ombro e talvez sugerir uma conversa com alguém que entenda do riscado. Afinal, a gente precisa de ajuda, e não de escárnio, quando a realidade parece pesada demais.

O "problema" com P maiúsculo surge quando a coisa transborda do universo particular para o coletivo. É quando o dono do bebê reborn não quer mais apenas brincar, mas exige que outras pessoas entrem na sua "viagem", que tratem o boneco como um ser humano de verdade. Aquele "querer que os outros vejam o que só eu vejo" é um sinal de alerta. Se começo a conversar com um ser imaginário e insisto que você, caro leitor, também dialogue com ele, bem, aí a fronteira entre o privado e o público foi cruzada. E, convenhamos, exigir que o SUS dê tratamento para um boneco, como vimos em notícias recentes – e estamos falando de junho de 2025, viu? – é um indicativo de que algo está seriamente desajustado.

No fundo, como tudo que surge e vira moda, essa "onda" dos bebês reborn também terá seu ápice e seu declínio. Ficarão as memórias e, talvez, o uso por aqueles que ainda estão buscando um equilíbrio mais saudável na relação com o mundo. Porque, no final das contas, o delírio individual, por mais que possa ser um mecanismo de defesa, não pode virar um delírio coletivo. Aí, nem psicólogo, nem psiquiatra, nem a melhor farmacologia do mundo daria conta de cuidar e organizar. O importante é manter os pés no chão, mesmo que o coração esteja nas nuvens com um "boneco realista" nos braços.

Ah, uma vez que as palavras servem para nomear as coisas, penso que a expressão "boneco realista" descreve muito melhor o objeto (isso mesmo).

29 de maio de 2025

Marcas dolorosas e invisíveis: a violência nossa de cada dia


Foto: Ibraheem Abu Mustafa/ReutersREUTERS/Ibraheem Abu Mustafa

A violência é uma cicatriz que o tempo não apaga, apenas atenua. Lembro-me das duas vezes em que fui assaltado em Fortaleza, revividas agora ao ler o relato da professora Fernanda Leal. Na primeira, dentro de uma locadora, a arma apontada, o chute nas costas, o tiro que ecoou a centímetros da minha cabeça. Na segunda, dentro de um ônibus, o cano frio do revólver pressionando meu abdômen. Anos se passaram, mas o corpo ainda guarda a memória do medo. Superei o trauma ao enfrentá-lo, disparando um revólver em um clube de tiro, com um instrutor ao lad, eu com dificuldade para segurar a arma, imagine acionar o gatilho e depois conseguir fazê-lo por mais vezes, até que o pavor virasse apenas lembrança. Mas quantos carregam essas marcas sem jamais se libertarem?  


A violência nos reduz à nossa fragilidade. Humilha, paralisa, rouba mais que objetos — rouba a sensação de segurança. E, no entanto, sei que minha experiência é ínfima perto do que outros sofreram e sofrem: as vítimas da ditadura, torturadas até o delírio ou a morte; as crianças de Gaza, esmagadas sob os escombros de uma guerra sem fim. Se meu trauma foi um rio, o deles é um oceano de dor. E isso revela uma verdade cruel: a violência é uma linguagem universal, mas sua escala define quem somos como humanidade.  


Precisamos de mais que leis — precisamos de um código moral que una povos, que transcenda a Declaração dos Direitos Humanos, ainda tão violada. Um pacto que não apenas condene a barbárie, mas que a impeça de renascer. Porque a violência não é só física: é a fome que corrói, a desigualdade que esmaga, a indiferença que normaliza o sofrimento alheio.  


A paz não será um acaso histórico, mas uma construção diária. Começa com a recusa à naturalização da crueldade, com a empatia que nos faz enxergar no outro um igual. Se meu trauma me ensinou algo, foi que o medo pode ser vencido, mas a injustiça só se dissolve com ação.  


Não basta lamentar. É preciso exigir um mundo onde nenhuma criança precise temer bombas, onde nenhum jovem seja reduzido à escolha entre a arma e a fome. O futuro não será melhor por acidente — será porque o construímos assim. E isso começa hoje, na recusa ao silêncio, na coragem de transformar indignação em movimento. A humanidade já sangrou demais. Proteste! Reclame! Grite! Chega!

28 de maio de 2025

A Sombra que Segue em Mim


Quarenta e oito anos se passaram, mas o cheiro do café da madrugada, o sussurro no ouvido chamando, “Antõe Guede, olha a caça!” e o tilintar da cartucheira ainda ecoam em mim como um chamado silencioso. Meu pai partiu num dia como este, deixando para trás um menino de quatorze anos que, de repente, teve que aprender a andar sem a grande sombra que o guiava. Hoje, com doze anos a mais do que ele tinha quando se foi, descubro que essa sombra nunca realmente me abandonou – apenas se fundiu à minha própria.

Lembro das nossas caçadas antes do sol nascer, quando o mundo ainda era feito de mistérios e a caatinga respirava segredos. Eu, de baladeira em punho, seguia seus passos como um aprendiz de vida, pisando o mesmo cascalho que ele pisava, enfrentando os mesmos medos – das cobras que eu imaginava, penduradas nas árvores, dos fantasmas que minha mente infantil inventava. Ele não me ensinou apenas a caçar ou pescar; me ensinou a ler o silêncio, a decifrar os sinais do mato, a entender que a sobrevivência muitas vezes vem com suor e paciência. Cada pássaro abatido em pleno voo, cada peixe fisgado no riacho raso ou no açude, não era só alimento – era uma lição de resistência.

Seu cheiro – uma mistura de poeira, suor e cigarro – ainda habita minhas memórias como um perfume sagrado. Lembro das espinhas e cravos que espremia em suas costas largas, da cartucheira na cintura, do jeito meticuloso como preparava cada expedição, por mais simples que fosse. Naquela época, eu não sabia que esses momentos se tornariam tatuagens eternas num local que, por falta de melhor definição, eu chamo de alma. Hoje, quando fecho os olhos, vejo suas mãos calejadas amarrando anzóis e tecendo as malhas de uma tarrafa, seu sorriso contido quando eu acertava um alvo difícil.

Não sei como seria minha vida se ele tivesse ficado. Talvez mais leve, talvez mais dura – não importa. O que sei é que ele nunca realmente se foi. Vive nas minhas escolhas, nos meus dilemas, na pergunta que sempre faço: "O que ele pensaria disso?" Às vezes, sinto sua voz sussurrando conselhos, outras vezes, uma repreensão silenciosa quando enveredo por caminhos tortuosos. Ele se tornou minha bússola moral, um farol que, mesmo invisível, nunca deixa de iluminar.

E assim sigo, carregando-o dentro de mim – não como um peso, mas como uma força. Gratidão não é a palavra certa; é algo mais profundo, mais visceral. É a certeza de que, mesmo sem querer, ele me moldou não apenas com suas palavras, mas com seu exemplo. Até mesmo o violão, eu aprendi a tocar como uma resposta a ele, que não quis ensinar aos filhos a arte que ele mesmo abandonou. E se hoje sou quem sou, é porque um dia fui o menino que caminhava atrás dele, tentando pisar nas mesmas pegadas. A vida o levou cedo demais, mas ele conseguiu, em tão pouco tempo, plantar em mim raízes que nem o tempo conseguiu arrancar. E enquanto eu viver, ele também viverá – não como saudade, mas como presença. Afinal, os pais nunca morrem. Apenas se tornam parte do vento que a gente sente nas costas, empurrando a gente para frente.


Rangel Junior



27 de maio de 2025

A Sinfonia das Pequenas Coisas


O dia começou envolto em névoa, um véu delicado que escondia os telhados e transformava a paisagem em algo quase etéreo. Enquanto a neblina dissipava lentamente, a água da fonte no quintal jorrava em um ritmo sereno, convidando-me a uma pausa. Após uma boa noite de sono, dez minutos de meditação bastaram para que eu sentisse a energia renovada, como se a quietude daquele instante tivesse o poder de recarregar a bateria da alma. Era um lembrete singelo de que a tranquilidade não está nos grandes eventos, mas nos intervalos silenciosos entre eles.  


No jardim, as carpas coloridas deslizavam pela água com graça hipnótica, seus movimentos sinuosos pintando traços de beleza efêmera. Os lírios vermelhos, que cuidamos como uma homenagem à minha mãe, estavam em plena floração, espalhando pelo ar não apenas seu perfume, mas também memórias afetivas que resistem ao tempo. Cada pétala parecia sussurrar que a vida, por mais breve que seja, é repleta de delicadezas que merecem ser notadas. Quantas dessas pequenas maravilhas passam despercebidas na correria do cotidiano?  


O café quente trouxe consigo um aconchego, além do paladar — um verdadeiro abraço por dentro, um ritual diário que aquece corpo e espírito. Do lado de fora, a cidade despertava em uma cacofonia de sons: motores, buzinas, latidos, o canto alegre dos pássaros. Até os pardais, em sua algazarra despretensiosa, contribuíam para a sinfonia urbana, sempre única e cambiante. Era como se cada dia fosse uma nova apresentação, com músicos diferentes e partituras improvisadas.  


Os quarenta minutos de exercícios, o banho revigorante, a cama arrumada com cuidado—tudo isso compunha um ritual de autoconhecimento e gratidão. Não eram gestos grandiosos, mas tinham o poder de estruturar o dia com sentido. E, no fim, era isso que ficava: a certeza de que a felicidade não está nos holofotes, mas nos detalhes que muitas vezes ignoramos.  


Viver plenamente é saber que cada instante é irrepetível. A névoa vai se dissipar, as flores murchar, o café esfriar — mas enquanto duraram, foram perfeitos. E é nessa fugacidade que reside a beleza da existência: na capacidade de encontrar alegria no efêmero, de celebrar o aqui e agora como se fosse a única coisa que realmente importa.


Rangel Junior