Há um trecho de canção que me acompanha desde a adolescência e com o qual já tive muitos namoros filosóficos. Uma curiosidade sempre me perturbou sobre a autoria da idéia, da frase, que acho fantástica como 'tirada' poética e filosófica.
Não sei, dentre os três parceiros, Mu, Claudio Nucci e Paulinho Tapajós quem seria o criador (ou criadores?) daquilo que considero uma pérola.
Veja e tire suas conclusões.
"(...) É talvez eu seja simplesmente / Como um sapato velho/ Mas ainda sirvo / Se você quiser / Basta você me calçar / Que eu aqueço o frio / Dos seus pés."
Quem nunca não se amarrou num sapato velho? O couro amaciado, o solado levemente gasto para um lado, o salto substituído numa reforma básica, um detalhe ou outro denunciando a idade...
Sinceramente falando, quem nunca guardou uma camiseta velha, poída, um furinho escondido, um cerzido disfarçado, o tecido já se esgarçando em uma parte ou outra? Isso sem falar de uma certa peça íntima que, com o passar do tempo, de tanto uso e perfeita integração, quase acoplada ao seu corpo você teve pena de jogar fora... tão macia, tão confortável que passou a ser roupa de dormir.
Lembro-me de um trecho que li sobre etiqueta e elegância masculina onde o sujeito afirmava que no guarda-roupa básico de um homem deveria ter um par de sapatos pretos, outro par marrom e um par de tênis. Com este conjunto você estaria pronto para qualquer coisa.
Eu que nunca fui de fazer coleção de sapatos tenho para uso pessoal uma sapatilha artesanal, de cordão trançado, comprada há quase 14 anos na feira de artesananto da torre de Brasília, a qual já me rendeu boas piadas e provocações machistas, mas que sinto-me leve com elas nos pés. Tanto que já se vão duas trocas na leve borracha que garante o apoio dos pés quando quero pisar macio e informalidade me permite. E a velha sapatilha lá, quase intacta, aquecendo o frio dos meus pés quando preciso.
Há algum tempo fui convencido, não sem muita luta e resistência, a doar um velho par de sapatos de cor marrom que já tinha dado muito de si em prol de minhas caminhadas e andanças por este mundão sem porteira, pelos bares, pelas noites, pelas cidades, aeroportos, rodoviárias, solenidades... Doei os sapatos com profundo pesar, pois havia me afeiçoado a eles e mesmo usando os tais muito raramente, sempre que pensava em me livrar dos mesmos batia uma espécie de sentimento de culpa, como uma ingratidão pelo tanto que me acompanharam.
Quase sempre me apaixono pelos meus sapatos, tênis, sandálias e mantenho com eles todos uma relação de afeto, de cumplicidade, como se eles me conduzissem silenciosamente, secretamente a lugares e emoções sem nunca cobrarem nada em troca.
Sempre me emociona ouvir a canção cantada por Roupa Nova, Cláudio Nucci, Quarteto em Cy, tanto faz, pelo seu lirismo, arranjo perfeito, vocais afinados e acima de tudo, pela sua beleza poética.
Depois de chegar com tranquilidade e razoável saúde à casa do 'enta' vejo-me um tanto assim também, como esse sapato velho. Quer dizer, nem tanto, nem tão pouco. Ainda não exatamente assim, mas preparando o 'espírito' e fortalecendo as energias corporais para resistir e de forma criativa nunca ser tratado como um sapato velho. De qualquer forma, a beleza da canção sempre provoca um arrepio ao cantar o trecho "(...) basta você me calçar / Que eu aqueço o frio / Dos seus pés".
É uma maravilha! A vida é bela!
Crédito da foto. "Sapatos", de Vincent Van Gogh