3 de fevereiro de 2022

UM COMETA CHAMADO FIDEL


A morte é o que se espera da vida, se bem que não se passa uma vida esperando a morte. Passa-se a vida vivendo-a. É o que se imagina ou se deseja. E vivê-la em plenitude seria uma espécie de prêmio, com a recompensa final de uma morte digna. Mas aí já surge a pergunta sobre o que seria uma “morte digna”.

Ah, por favor! Não me faça perguntas difíceis, pois elas exigem respostas complexas! Por esses dias eu me flagrei pensando sobre morte e vida e fui abalado fortemente pela sombra da morte. Sim, pois a morte é como uma sombra que nos acompanha e por vezes nos assusta.

A morte digna talvez fosse o resultado de uma vida longeva e plena de realizações e aventuras. Muitos se lançam às aventuras e até morrem por elas… ou como consequência delas, isto porque escolhem viver mais a largura da vida que a lonjura. Há, porém, os que preferem uma vida simples, regular, miúda, pouco agitada e muitíssimo longa. Nem sempre uma coisa leva necessariamente à outra.

Mas mudando de água para chocolate, esse rodeio todo era porque eu queria mesmo falar de Fidel. Fidel foi um pequeno cometa que escapuliu do Cinturão de Kuiper e realizou quase um giro completo de um ano solar em nossas vidas. E como um cometa, fez brilhar sua bela cauda amarela, não de partículas de poeira e gases, mas de pelo brilhante de um legítimo gato vira-latas ou SRD – se preferirem – ou um gato-pé-duro, gato-rabo-fino, desses que não têm marca nem descendência pomposa ou árvore genealógica, assim como tantos Silvas deste Brasil.

Digo que ele passou em nossas vidas porque, humanamente equivocados, tentamos aprisioná-lo entre nós. Todavia, ninguém aprisiona um cometa, senão, no máximo a sua imagem e memória. E Fidel era um cometa. E ai de quem duvidar.

Nosso Fidel Gato foi um cometa, que brilhou, cumpriu seu destino, e se foi. Não fugiu de casa. Apenas saiu para passear e encontrou-se com o seu destino fatal. Como diria Ariano Suassuna, na voz de Chicó: “Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.” A verdade é que aquele motorzinho de pura energia, aquela bomba móvel de carinho foi desativada, deixou de funcionar.

Aquele Fidel, que nos encantou por quase doze meses fechados, aquele bichinho existe agora apenas como um corpinho frágil se decompondo numa curva de estrada, uma cova fria – amargamente cavada por mim mesmo – coberta por um pequeno conjunto de pedras e um galho de marmeleiro, ali no rumo sul de Campina Grande pra Galante.

Pedras sobre um pequeno monte de areia e cascalho e umas flores de marmeleiro como última homenagem, naquele lugar ermo, tornado agora sua morada eterna, até que a terra e o tempo cumpram o seu papel. Voltará ao pó de onde veio, como diz a profecia fatal.


Estamos muito abalados e doloridos, pois o nosso cometa felino e peludo havia conquistado nossos corações e ocupado um importante espaço afetivo em nossa existência coletiva cotidiana. Está fazendo falta e ainda estamos nos acostumando com a ideia de sua perda.

Muitas mensagens bacanas chegaram até nós, de amigos e amigas próximas e distantes, e agradecemos demais. Chorar seus mortos é um direito universal. Isto tem também seu componente fortemente cultural e por isso alguns povos celebram a morte não pela perda da vida, mas pelo viés da gratidão pela passagem marcante daquele ser vivo pela vida de outros tantos seres vivos.

A vivência e experiência do luto se divide em fases. E a primeira é a negação. Exemplo disso já aconteceu na primeira noite após a sua efetiva ausência em casa. Guilherme acordou narrando um sonho em que descobrira ser outro gatinho, de cor e tamanho iguais ao Fidel, que fora atropelado, e que ele reaparecia do nada, voltando para nossa casa. Sua casa. Mesmo em meio ao pranto, ainda elaborou uma bela argumentação: “Eu preferia saber que ele teria fugido de uma vez e que estaria vivo, morando com alguma outra família!”

Por ora, resta-nos aceitar e agasalhar no peito as singelas recordações desse bichinho que, durante quase um ano em nossa casa, ocupou todos os espaços físicos possíveis e mexeu profundamente com nossos afetos, fez uma verdadeira revolução em nosso jeito de ver, viver essa relação amorosa dos humanos com animais de estimação e mudar nossa forma também de ver os outros.

Nunca pensei em prantear tanto uma perda… mas agora já sei como é e decidi não me esconder por trás de uma suposta racionalidade adulta, pois que também ninguém precisa sentir vergonha de sentir. Nosso Fidel Gato será eterno para nós enquanto vivermos.

E se você me perguntar se me arrependo de algo, eu posso dizer que sim. Arrependo-me profundamente das vezes em que impedi sua diversão com alguma lagartixa ou filhote de pássaro. Naqueles momentos eu não estava fazendo nada mais que censurá-lo ou tolher a sua possível e mesmo controlada liberdade felina. A realização daquilo que lhe era mais peculiar e originalmente pura personalidade animal, o seu instinto de caçador. E o que ele queria era apenas ser gato. É claro, um gato acarinhado, amado, cuidado, mas apenas gato em sua plenitude.

É isso!

Rangel Junior

(Twitter/Instagram/Facebook) @RangelJrOficial


6 comentários:

Ana Rangel disse...

"A única certeza que temos na vida é que um dia morreremos"
Maria Eneide Freire Rangel
A grande filósofa das nossas vidas. Aprender a viver e amar sabendo que tudo, exatamente tudo é finito.
Belo texto.

Regiopidio Lacerda disse...

Chorei de novo...enxuguei as lágrimas e li o texto novamente. Sua cadência e doçura me fez ver Fidel nos meus braços, cabeça para o lado e tentando enrigecer o rabo que se avolumava, ao mesmo tempo em que oferecia a barriga para um afago enquanto Guilherme dizia: "ele não estranha não, é um gato gente boa". Lindo Fidel. Quem pensa que adotamos um gato e fazemos o bem a ele se engana, ele nos adota, nos ensina e transforma a nossa forma de enxergar os bichos, as coisas, o mundo e nos faz o bem.
Abraço forte Rangel, Camila, Vinicius e Guilherme. Valeu muito a pena ter conhecido Fidel Gato.

Unknown disse...

Muitas vezes, é difícil manter o equilíbrio entre a dor e o sorriso.
Nos questionamos se o paraído existe de fato.
(Almeida, M. M. de)

Unknown disse...

A morte.
A pandemia tem sido cruel.
Em todos os sentidos.
Nos afastou de tudo.
De momentos inesperados e inesquecíveis.
Principalmente, dos familiares e amigos.
Nossos companheiros.
Parceiros de tantos encontros.
Nos roubou nossos sorrisos e sonhos.
Nossos olhares descontraídos.
E quando damos por conta.
A conta já não fecha.
O destino destemido.
Arredio e impetuoso.
Nos tira um por um.
Aos poucos.
A cortina do palco da vida.
De forma arredia cai.
Perdemos tantas oportunidades.
Em olhar em seus olhos.
Em sorrir com seus sorrisos.
Abraçar descontraído.
Aquecendo o corpo e alma.
Perdemos por tantos outros motivos.
Os amigos.
Pela distância que nos separa.
E pela ingrata notícia inesperada.
A morte vil.
Sempre tão injusta.
Não pergunta nada.
Apenas maltrata quem fica.
A dor que fica.
Faz feridas profundas.
Sangra dia e noite.
O tempo em seu silêncio.
Responsabiliza-se em cicatrizar.
Transforma sofrimento em saudade sem fim.
A dor com o tempo diminui.
Mas, a morte fria rouba a nossa fantasia.
Fantasia de sonhar juntos.
Correr, pular, dançar e cantar.
Gritar outros sonhos.
Pois, a saudade é na verdade.
A presença ou ausência de almas que se entrelaçam.
Almas sem distinção.
(Almeida, M. M. de)

Unknown disse...

Temps Aika, 16 anos de muito amor, sai do meu apto para morar novamente com ela, em uma casa,pois uma rusky siberiano não pode ficar trancada num apto, descobrimos um cancer, imaginamos sua partida, mas resolvemos não sofrer por antecedencia, ela não tem reclamado, mas estamos de "olho" todo tempo.

Anônimo disse...

Obrigado por compartilhar. Um abraço fraterno.