16 de maio de 2007

"Cacos das putas": a imagem da mulher na canção massificada

Este texto foi publicado no portal www.vermelho.org.br. Achei por demais merecedor de uma opstagem aqui. Por Mariângela Ribeiro* Circula atualmente pela internet um e-mail que denuncia a discriminação e o preconceito declarados numa canção da banda Mastruz com Leite. Refiro-me à Bomba no Cabaré, que diz o seguinte: Mastruz com Leite: machismo "Jogaram uma bomba no cabaré / voou pra todo canto pedaço de mulher / foi tanto caco de puta / voando pra todo lado / dava pra apanhar de pá, / de enxada e de colher! / no meio da rua tava os braços da Tereza / No meio fio tava as perna (sic) de Raché / Em cima da telha os cabelo (sic) de Maria / No terraço de uma casa os peito (sic) de Isabé! / Aí eu juntei tudo e colei bem direitinho / fiz uma rapariga mista, / agora todo homem quer / pode jogar uma bomba lá no cabaré / que eu junto os cacos das putas / pra fazer outra mulher". O problema é que esse tipo de discurso é mais comum do que pode parecer aos ouvidos não poluídos pelos sons cotidianos de nossas cidades. Em Bomba no Cabaré encontramos um discurso social totalmente desrespeitoso com nós, mulheres em geral, e, particularmente, com as profissionais do sexo. Discurso que não é novo na música popular no Brasil (1). Mas que, atualmente, traz um teor de banalização a níveis antes inimagináveis. As letras criadas entre os anos 30 e os 70 parecerão inocentes... Aos mais relativistas, esta afirmação pode soar preconceituosa ou moralista. Mas não o é. Destaco apenas a substituição da poética (que colocou a nossa música como referência mundial) por um naturalismo sem graça, para não dizer preconceituoso e violentador do sublime, do humano. E não estou sugerindo que falta inspiração ou cultura aos criadores individuais da atualidade. Mas lembro que estamos tratando de canções fabricadas por uma indústria poderosa, que trabalha com padronizações, estilizando (e piorando) os elementos absorvidos do popular. Esta indústria cultural é expressão de um tempo marcado por mudanças nas práticas culturais, econômicas, políticas e sociais que se traduzem num individualismo profundo. "Eu sou o que consumo" Neste mundo fundamentado em modos mais flexíveis de acumulação de capital, a atuação e influência dos meios de comunicação tornaram-se complexas. Com a fragmentação do processo produtivo, os elementos culturais ganharam novas feições fundamentadas em tecnologias de ponta: "a fórmula substitui a forma". Para um público cada vez maior, novos produtos são criados com uma velocidade ímpar, legitimando o padrão cultural do "capitalismo tardio", isto é, o consumo enquanto "direito pessoal" que expressa "liberdade de escolhas". Entendendo padrão cultural como a maneira de "estar no mundo", os valores que legitimam os comportamentos, conclui-se que, "no processo de globalização, a cultura de consumo desfruta uma posição de destaque. (...) ela se transformou numa das principais instâncias mundiais de definição da legitimidade dos comportamentos e dos valores" (Ortiz: 1998, p.10). Dito de outra forma, eu sou o que consumo. Minha identidade está nas mercadorias materiais e simbólicas que adquiro. Assim, independente da origem destas produções, elas revelam "denominadores comuns" do chão histórico em que são criados. Antônio Cândido nos ensina que estes denominadores são elementos sociais e psíquicos partilhados por uma determinada sociedade. A obra de cultura (nesse caso, a canção) é considerada, assim, um sistema simbólico que faz a mediação entre o indivíduo e o social. Machismo clássico Seguindo esta lógica, Bomba no Cabaré representa valores e comportamentos do nosso "senso comum" - que oferece elementos para a criação de bens simbólicos ao mesmo tempo em que é formado/confirmado pelo discurso divulgado pela mídia. O pior, numa rápida busca na internet, vi que este tipo de discurso naturalista e agressivo/desrespeitoso às mulheres (e também aos homossexuais e aos transexuais, que aqui não tratarei) é encontrado nos gêneros musicais mais populares da atualidade, como os forrós estilizados e o funk carioca. Mastruz com Leite está entre os chamados forrós estilizados e seu discurso não se distancia de tantos outros, como demonstram canções de Cavaleiros do Forró e Calcinha Preta. Na referida pesquisa virtual, as letras deste estilo trazem fortemente a ideologia machista clássica. Uma do grupo Cavaleiros do Forro chamada Esporte de Mulher (Karatê) diz assim: "Homem gosta de forróde cachaça e de mulherseu esporte é o futebol (...) mas o esporte de mulher é o karatêo cara ter um carroo cara ter dinheiroo cara ter fazendanão precisa ser solteironão precisa ser bonitobasta só o cara ter". Segundo compositores como João Ribeiro (de Esporte de Mulher), a mulher é colocada não só como um ser em busca de dinheiro, status financeiro, mas como alguém incapaz de pensar em outros meios de obtê-los. Não se cogita outras formas dela conseguir a posição/riqueza que deseja. A única saída é arrumar um homem que realize seu "sonho". Os politizados Racionais MC's também afirmam esta idéia em Mulheres Vulgares: "Se liga aí: derivada de uma sociedade feministaque considera e dizem que somos todos machistasnão quer ser considerada símbolo sexualluta para chegar ao poder, provar a sua moralnuma relação na qualnão admite ser subjugada, passada para trásexige direitos iguais... e o outro lado da moeda, como é que é? pra ela, dinheiro é o mais importanteseu jeito vulgar, suas idéias são repugnantesé uma inútil que ganha dinheiro fazendo sexo (...) Fique esperto com o mundomulheres só querem preferem o que as favorecemdinheiro, ibope, te esquecem se não os tiverem..." Até Caetano Para finalizar, no funk, temos "pérolas" da banda Furação 2000, como Gorda Baleia (2) e Quer Bolete?. Esta última tem um erotismo cru, reforçando um discurso fálico segundo o qual a reclamação e o choro feminino podem ser curados através de sexo oral: "Alô mulherada...qué qué, qué bolete?tó toma, tó toma... pára de chorartoma bolete pára de reclamar". E sugere que a mulher, desde criança, é marcada pelo poder sedutor do falo: "Quando você era pequena não parava de chorarme pedindo a chupetinha para você chuparagora tu cresceu e pra não esquecercom a boca aberta me pedindo pra botar". Furacão 2000 fez fama ao cantar Tapinha não Dói, causando uma polêmica entre as feministas, tal como hoje Mastruz com Leite. Aliás, sucesso que foi celebrado por Caetano Veloso em shows de 2003. Mas, "pra não dizer que não falei das flores", encontrei uma letra da funkeira Tati quebra barraco que diz: "Tapinha nadanu meu homieu dou porradapára de marra e desce desse palcoque aqui no meu cafofosou eu que falo mais alto". O que, é claro, não afeta em nada o meu argumento. Inexiste neste discurso um questionamento sobre a forma como a mulher é exposta, o que fica confirmado por sua performance de palco, que reforça a idéia de "mulher objeto". Embrutecimento A resposta de Tati quebra barraco mostra que o desrespeito não vem só dos homens, revelando um tipo de sociabilidade que se fundamenta no uso da violência e, neste sentido, embrutece tanto homens como mulheres. Esta letra sugere que a igualdade entre homens e mulheres deve se dar oferecendo aos dois sexos a mesma condição para se "dar porrada", reforçando o ditado popular olho por olho, dente por dente. É por isso que, contrariando outra máxima popular, gosto não se discute, devemos sim, refletir sobre o que significa essa produção cultural que se legitima na palavra "entretenimento". Tais produções de massa (e o consumo subseqüente) reafirmam uma visão de mundo machista, indo de encontro a todos os avanços legais e simbólicos que vêem tentando diluir as desigualdades de gênero. E mesmo que se afirme que a maioria não gosta, simplesmente consome (porque aqui o reconhecimento significa estar informado sobre as últimas paradas de sucesso ou porque o ritmo sugere uma dança "maneira"), não teremos menores prejuízos. Quando não há constrangimento em cantar ou dançar canções que banalizam ou agridem a mulher, é porque os valores partilhados por nossa sociedade ainda o permitem. A música é o mais cotidiano dos objetos culturais ao circular em todos os meios (cinema, televisão, propagandas publicitárias, rádios, ciber-espaço) e, neste sentido, muito pode revelar de nós mesmos e do mundo em que vivemos. Parafraseando Thomas Mann, "a música é sempre suspeita". Daí a importância de, como sugeriu a amiga que enviou o e-mail, nos mobilizarmos através de ações diversas contra bens simbólicos que insistam na reificação da figura feminina ou no incentivo à violência contra a mulher. * Mariângela Ribeiro é mestre em sociologia e faz parte da equipe do Gajop (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares) Referências: BOURDIEU, P. O poder simbólico. São Paulo: Bertrand, 1999. 247 p.CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. São Paulo: T.A. Queiroz, 2000. 193 p.JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997. 431 p.MARTÍN-BARBERO, Jésus. De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura y hegemonía. México: ed. G. Gili, 2002.ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: ed. Brasiliense, 1998. Notas: (1) O repertório que se consagrou como representante por excelência de nossa tradição musical canta o amor, a beleza e/ou temas que nos dizem respeito sem teor de discriminação e/ou preconceito. Porém, nos anos 20 e 30, momento de culto à malandragem e à boemia, comportamento e espaço por excelência masculino, era comum encontrar incentivo à violência contra mulher (Ver Mulher Indigesta, de Noel Rosa, e Já Já, de Sinhô, por exemplo). Esta, ou era vista como mulher de malandro (que gosta de apanhar) ou idealizada e elogiada como rainha do lar (Amélia, de Mario Lago). Na fase da consolidação da MPB (Bossa Nova ao Tropicalismo), embora não seja regra, encontramos canções que dão voz a esse mesmo lado "amélia" tido como natural das mulheres. (2) Gorda Baleia é claramente preconceituosa e sugere violência: "você não é Carla Peres/ nem Luiza Brunet/ então presta atenção no que o Fabrício vai dizer/ gorda baleia/ vou te esculaxar/ bunda de borracha/ peito de maracujá".

2 de maio de 2007

DAS ANTIGAS II

Noutro dia comentei que deveria ter nascido com atraso de uns 20 anos. Em 2007 fecharei os '45' e me pego, vez por outra, recordando coisas que, parece, ainda são usadas no universo da matutice caririzeira. Sou de um tempo em que os dois ossos largos que ficam nas costas se chamavam de pá, ou pás. O sujeito ainda dizia assim: "tou com uma dor nas apá". Nesse mesmo tempo, ouvi o velho Ramirão - goleiro tão maravilhoso e famoso em Juazeirinho quanto Tafarel foi no Brasil - dizer que ainda segurava umas bolas jogando de "quipa", mesmo tendo quebrado o osso mucumbu. Vez por outra, quando sofríamos alguma queda frontal, saíamos com a bolacha do joelho arranhada, quando não avariada mesmo. Nesse mesmo tempo eu ouvia dizer que uma mulher não deveria pegar outro bucho antes de enxugar a mãe-do-corpo. Muitas vezes fui chamado pra cear ainda na boquinha da noite, muitas vezes coincidindo com a hora da ave-maria. Ainda ouvi muita beata gasguita tirar bendito em novenas de maio. Falar nisso, sou do tempo em que um defunto católico não seria enterrado sem passar diante da igreja, sem o padre encomendar sua alma, nem sem tirar um belo retrato exposto nalgum lugar com a família rodeando o caixão. Lembro como se fosse agora de quantas vezes senti dor na espinha, talvez até por conta de exercícios mal feitos que me renderam uma hérnia de disco bem depois. Nunca esqueci de quantas vezes levei croque de irmãos e amigos logo depois de raspar o cabelo ao estilo militar. Quantas e quantas vezes joguei gamão com parceiros que tinham cinco vezes a minha idade ou mesmo colegas do mesmo top que eu. Não poderia deixar de lembrar das vezes em que fiquei com a cabeça do dedão inchada ou a unha levantada por conta de um tropicão numa pedra ou beira de calçada. Realmente, quando em vez me pego puxando pela memória e vêm coisas até engraçadas e, por que não dizer, saudosas? Por exemplo, continuo achando que tem bem mais poesia em fazer enxerimento que em transar. Afinal, transa também pode ser negócio, enquanto que a outra expressão, ah, essa não deixa dúvidas, só cabe ali.